quinta-feira, 14 de abril de 2011

Marco regulatório: mais de duas décadas depois

Carta Maior - Venício Lima:

"Marco regulatório: mais de duas décadas depois
O atraso do Brasil no que se refere à regulação do setor de comunicações é extraordinário. Tanto é que apenas a regulação de normas que estão na Constituição há mais de 22 anos já seria um avanço importante. Mesmo assim, essa eventual e tímida proposta enfrenta feroz resistência da mídia tradicional.

Venício Lima

Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa

Em audiência pública na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, realizada no último dia 6 de março, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, afirmou que o projeto para um marco regulatório do setor 'se centrará em modernizar a legislação defasada e regulamentar os artigos da Constituição que tratam da comunicação' [ver aqui matéria da Agência Câmara].

Regulamentar os artigos da Constituição já seria um avanço importante.

Decorridas duas décadas e mais de dois anos da promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, a inoperância do Congresso Nacional em relação à regulação do Capítulo V ('Da Comunicação Social'), Título VIII ('Da Ordem Social), já mereceu, inclusive, uma Ação de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), que aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (ver, neste Observatório, 'Três boas notícias').

Benefícios para a cidadania
Ao contrário do que a grande mídia alardeia em sua campanha permanente contra qualquer tipo de regulação – o temor de que regular é censurar – existem inúmeras conseqüências imediatas e benéficas para a cidadania de uma possível regulação que cuidasse de 'regulamentar os artigos da Constituição que tratam da comunicação'.

Sem mencionar a consequência fundamental para o processo democrático que se refere ao aumento da quase inexistente diversidade e pluralidade de idéias e opiniões no espaço público midiático – menos perceptível para o conjunto da população –, e sem pretender ser exaustivo, basta ler os cinco artigos do Capítulo V para que se revelem exemplos de benefícios imediatos.

Artigo 220
O professor Fábio Konder Comparato, em recente entrevista, lembrou que o Inciso II do parágrafo 3º do artigo 220 manda que lei complementar estabeleça os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Tal lei não existe.

A Organização Mundial da Saúde, desde 2005, tem lançado advertências sobre os efeitos nocivos à saúde, provocados pela obesidade, sobretudo entre crianças e adolescentes. Neste sentido, a Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, baixou, em 15 de junho de 2010, a Resolução, RDC n º 24, regulamentando...

'...a oferta, propaganda, publicidade, informação e outras práticas correlatas, cujo objetivo seja a divulgação e a promoção comercial de alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor nutricional' (ver aqui).

A Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), vendo seus interesses empresariais contrariados, ingressou com ação na Justiça Federal de Brasília contra a Anvisa pedindo que esta não aplicasse aos seus associados os dispositivos da referida resolução, de vez que só uma lei complementar poderia regular a Constituição.

Resultado: a 16ª Vara da Justiça Federal suspendeu os efeitos da resolução em liminar posteriormente mantida pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região.

Não interessaria à cidadania, sobretudo a mães e pais de crianças, a regulação da propaganda de 'alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor nutricional'?

Da mesma forma, não interessaria a regulação do parágrafo 4º do mesmo artigo 220, que se refere à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias?

O parágrafo 5º do artigo 220, por outro lado, é aquele que reza que 'os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio'. Sua regulação teria, necessariamente, que restringir a propriedade cruzada – um mesmo grupo empresarial controlando diferentes meios (rádio, televisão, jornais, revistas, provedores e portais de internet), num mesmo mercado – como, aliás, acontece nas principais democracias contemporâneas. Ao mesmo tempo, deveria promover o ingresso de novos concessionários de rádio e televisão no mercado de comunicações.

Não interessaria à cidadania ter mais alternativas para escolher a programação de entretenimento ou de jornalismo que deseja ouvir e/ou assistir?

Artigo 221
Os quatro incisos do artigo 221 se referem aos princípios que devem ser atendidos pela produção e pela programação das emissoras de rádio e televisão. São eles: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; e respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Não interessaria aos produtores independentes de cinema e vídeo a geração de empregos, a promoção da cultura nacional e regional e o incentivo à produção cultural, artística e jornalística regional? E a todos nós o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família?

Artigos 222 e 223
Dos artigos 222 e 223 – deixando de lado a questão crítica das outorgas e renovações das concessões de rádio e televisão – talvez o benefício mais perceptível para a cidadania fosse a regulamentação do 'princípio da complementaridade' entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão. Combinado com a regulação do parágrafo 5º do artigo 220, possibilitaria o equilíbrio hoje inexistente no mercado das empresas de rádio e televisão com os benefícios já mencionados.

Artigo 224
O último dos artigos do Capítulo V cria o Conselho de Comunicação Social, que, apesar de regulamentado por lei de 1991, depois de precários quatro anos, deixou de funcionar em 2006. Registre-se: por responsabilidade exclusiva do Congresso Nacional (ver, no OI, 'Quatro anos de ilegalidade').

O descumprimento da lei 8339/91, todavia, não deve impedir a criação dos conselhos de comunicação estaduais. Em alguns estados e no Distrito Federal eles já estão previstos nas respectivas Constituições. Quando isso não acontece, emenda aprovada nos legislativos estaduais poderá fazê-lo. Os conselhos constituem um importantíssimo instrumento, por exemplo, de acompanhamento e controle dos gastos públicos com publicidade, nos termos da lei 12.232/2010 (ver 'Sobre inverdades e desinformação' e 'Sopro de ar puro no DF').

Não interessaria à cidadania saber e controlar como seu próprio dinheiro está sendo distribuído pelos governos estaduais para a mídia regional e local?

Atraso extraordinário
Ao fim e ao cabo, o atraso do Brasil no que se refere à regulação do setor de comunicações continua extraordinário. Tanto é verdade que apenas a regulação de normas e princípios que estão na Constituição há mais de vinte e dois anos já significaria um avanço importante.

E mesmo assim, como se vê diariamente, essa eventual e ainda desconhecida proposta oficial de marco regulatório – tímida e insuficiente – enfrenta a feroz resistência organizada de atores da mídia tradicional.

Seria porque eles continuam se beneficiando com o velho status quo?


Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.


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segunda-feira, 11 de abril de 2011

Promovendo um debate público sobre a Comissão da Verdade


Carta Maior - Direitos Humanos : "Promovendo um debate público sobre a Comissão da Verdade

Diversamente que preconiza uma certa mídia, fazendo eco a interesses patronais e a receios no tocante à exposição pública do seu papel durante a ditadura militar, a experiência internacional das Comissões de Verdade não abona a tese do risco de confrontos sociais. Pelo contrário, a justiça de transição, independentemente dos caminhos seguidos em cada país, jamais trouxe ou aumentou os níveis de violência, conduzindo, por exemplo, a golpes de Estado ou ameaças de alteração da ordem social. A reconciliação nunca precisou ser imposta como pressuposto ao funcionamento das Comissões de Verdade. O artigo é de Luiz Carlos Fabbri.

Luiz Carlos Fabbri - Comissão Justiça e Paz de São Paulo

Promovendo um debate público em torno da criação e funcionamento de uma Comissão de Verdade no Brasil

Resumo

O presente documento tem por objetivo justificar e propor um papel protagonista da sociedade civil no processo de implantação da Comissão Nacional de Verdade no Brasil, cuja proposta de criação, constante de Projeto de Lei do governo federal em meados de 2010, tramita atualmente na Câmara de Deputados. No documento, avaliam-se os obstáculos para a consecução da justiça de transição no Brasil, em particular a impunidade frente à violação dos direitos humanos, como traço permanente da história política do país; apontam-se alguns ensinamentos relevantes de experiências de outros países; argumenta-se em torno da necessidade incontornável da participação da sociedade civil nessa empreitada e sugerem-se alguns componentes e modo de funcionamento de um programa estruturado de ações sob a égide da sociedade civil.

1. Contexto
Um projeto de lei que cria a Comissão Nacional da Verdade, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, foi enviado pelo Executivo ao Congresso em maio de 2010, tendo recebido a referência PL-7376/2010. Antes que isso ocorresse, o tema do direito à memória e à verdade foi objeto de intensas discussões no seio do governo federal, polarizadas entre o Ministério da Defesa e a Secretaria de Direitos Humanos. A formulação inicial que fazia parte do III Programa Nacional de Direitos Humanos foi criticada pelo Ministro da Defesa e pelos Comandantes das Forças Armadas, com ampla repercussão na mídia.

Em consequência, produziu-se um acordo político pelo qual várias ações programáticas contidas nos Objetivos Estratégicos que dão corpo ao Eixo Orientador VI, versando sobre o Direito à Memória e Verdade, foram modificadas com respeito à versão original do III PNDH, mediante o Decreto Nº 7.177, de 12 de maio de 2010. As alterações se referem basicamente a uma ampliação de foco, eliminando a referência explícita aos crimes cometidos pela ditadura e substituindo-a por uma forma mais anódina ('graves violações de direitos humanos praticadas no período'), ao mesmo tempo em que se relativizavam as responsabilidades das instituições militares no enunciado de ações programáticas específicas.

De maneira geral, os objetivos da Comissão Nacional de Verdade, constantes do Projeto de Lei, são bastante amplos e expressivos, como a seguir reproduzido:

“I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1° (1);

II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;

III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995;

V - colaborar com todas as instâncias do Poder Público para apuração de violação de direitos humanos, observadas as disposições das Leis nos 6.683, de 28 de agosto de 1979, 9.140, de 1995, e 10.559, de 13 de novembro de 2002;

VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.”

Segundo Eduardo Gonzalez, do Centro Internacional de Justiça de
Transição, o PL-7376/2010 tem objetivos meritórios, se tomarmos como referência experiências de outros países, como são os de promover o esclarecimento das violações ocorridas e, o que é muito relevante, de sua autoria; estabelecer formas de colaboração e parceria entre instituições públicas; determinar a realização de perícias e diligências; e promover audiências públicas. No entanto, ainda em sua opinião, é possível destacar
alguns sérios desafios que terá que enfrentar a Comissão Nacional de Verdade, aquilo que Paulo Freire chamaria de negatividades:

- Período histórico abrangido é demasiado extenso.

- Não há clareza sobre a composição e o modo de designação dos membros da Comissão.

- Poder de requisição de informações pode resultar frágil em caso de ocultamento contumaz.

- Obrigatoriedade de resposta governamental ao seu relatório final pode resultar problemática.

- Por último, mas não menos importante, a tradição de conciliação e impunidade, presente nas elites e no establishment político no Brasil vai continuamente manifestar-se.

O PL-7376/2010 tramita hoje na Câmara de Deputados e passados sete meses muito pouco foi feito. Nem sequer foi formada uma comissão especial para o exame do Projeto, como é habitual. Nos dias 13 e 14 de dezembro passado foi realizado um seminário internacional pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias, que possibilitou contudo desencadear o processo de discussão na Câmara.

O presente documento propõe-se a esclarecer alguns aspectos cruciais dos processos de justiça de transição no mundo e as particularidades da situação brasileira, destacar alguns ensinamentos úteis extraídos das experiências de outros países e demonstrar o caráter incontornável da participação da sociedade civil tanto na perspectiva do aperfeiçoamento do instrumento legal como do próprio funcionamento da Comissão de Verdade e do alcance dos seus objetivos. Com este propósito propõe a necessidade de um amplo processo de participação da sociedade civil em encontros ao longo de todo o país, região por região, já durante a fase atual, de tramitação do Projeto de Lei.

2. As particularidades do Brasil frente à necessidade de uma justiça de transição
A situação preponderante no Brasil é a de total impunidade dos torturadores e de todos aqueles que cometeram violações de direitos humanos durante a ditadura militar, o que representará sem dúvida um enorme desafio para a aprovação do PL-7376/2010 e para o próprio funcionamento da Comissão Nacional de Verdade. Ilustram este fato a crise gerada pela divulgação do III PNDH, acima referida, e o julgamento Superior Tribunal Federal acerca da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pela OAB, em que por 7 votos a 2, os ministros mantiveram o perdão aos que praticaram crime de tortura durante a ditadura militar.

Embora a capacidade de perdoar tivesse sido invocada pelos Ministros que votaram contra a ADPF, o valor do perdão só faz sentido se for concedido pelas vítimas da opressão, o que por sua vez supõe um pedido de perdão da parte dos que cometeram crimes. Com a decisão do STF, o Estado se antecipa às vítimas e decreta o seu perdão em nome delas. Com isso, a Comissão Nacional da Verdade poderia a rigor apurar verdades históricas, porém a dimensão de justiça estaria ausente porque os que cometeram crimes já foram perdoados.

O Projeto de Lei em trâmite na Câmara coloca entre seus objetivos a reconciliação. Sem que pedidos de perdão tenham que ser formulados e com a impunidade assegurada, não poderá haver materialidade para a reconciliação. Para a Comissão Nacional da Verdade, a reconciliação teria que ser entendida como um processo instituindo uma nova forma de convivência entre aqueles que se opuseram e se confrontaram numa dada fase histórica e que aceitam doravante virar a página do passado. A reconciliação não pode acobertar a prática de crimes como a tortura, o que seria não somente inexeqüível para o objetivo pretendido como uma afronta à memória de suas vítimas.

A permanência da impunidade representa uma chaga jamais curada no corpo social, um estigma histórico que a Comissão Nacional da Verdade precisará ajudar a superar. Ela está na raiz da contínua prática da tortura e da violência policial e carcerária nos dias atuais e constitui por si só um sério empecilho a reformas institucionais profundas e à implantação de um novo modelo de segurança. A razão de ser da justiça de transição é necessariamente a de permitir que as causas que estiveram na origem da ação violenta, dos assassinatos e das torturas, com sua seqüela de opressão e desrespeito à dignidade humana sejam reconhecidas como tais e enfrentadas.

Por outro lado, a Comissão Nacional de Verdade terá que impor-se ao sistemático ocultamento dos arquivos e informações sobre os mortos e desaparecidos, assim como sobre os perseguidos pela ditadura militar, sem o que não será possível assegurar o respeito aos direitos das vítimas e à própria verdade. Isso supõe um poder inequívoco de exigir essa prestação das instituições militares, qualificando a recusa como ação criminosa.

O imperativo da publicização dos crimes de violação dos direitos humanos e do fim da impunidade dos que os perpetraram constitui uma obra civilizatória, a construir com a participação da sociedade e o envolvimento direto das vítimas. O sucesso da Comissão de Verdade no Brasil terá que representar um ajuste de contas com o passado e um passo decisivo para o avanço democrático no país. Se isso não ocorrer tudo ficará como dantes, dentro e fora do quartel de Abrantes.

3. Alguns ensinamentos de Comissões de Verdade em outros países
Diversamente que preconiza uma certa mídia, fazendo eco a interesses patronais e a receios no tocante à exposição pública do seu papel durante a ditadura militar, a experiência internacional das Comissões de Verdade não abona a tese do risco de confrontos sociais. Pelo contrário, a justiça de transição, independentemente dos caminhos seguidos em cada país, jamais trouxe ou aumentou os níveis de violência, conduzindo, por exemplo, a golpes de Estado ou ameaças de alteração da ordem social. A reconciliação nunca precisou ser imposta como pressuposto ao funcionamento das Comissões de Verdade.

Pelo contrário, como concluiram os pesquisadores Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling, da Universidade de Minnesota, após extenso exame de processos de justiça de transição em todo o mundo, os julgamentos sobre a violação de direitos humanos nunca dificultaram a construção de regimes de direito na região, porém ajudaram a promovê-los (2). Kathryn Sikkink, em visita ao Brasil em 2008, afirmou claramente que “a punição aos torturadores do período militar não traz risco de instabilidade à democracia. Pelo contrário: além de consolidar o regime democrático pode melhorar a vida da população, com o avanço da preservação dos direitos humanos no país.”

Não existe, no entanto, um modelo único para a implantação de Comissões de Verdade. Isso depende muito da evolução histórica de cada país e do contexto político dos períodos em que o tema é colocado em pauta pela sociedade. Tão pouco, há uma relação necessária de precedência entre os processos de anistia política, as reparações políticas, econômicas ou
administrativas concedidas aos perseguidos e o início de funcionamento de uma justiça de transição.

No caso brasileiro, a anistia política de 1979, concedida pela ditadura militar, além de não abranger a totalidade dos que haviam lutado contra a ditadura, impôs a figura dos crimes conexos, com o propósito de isentar ou perdoar torturadores, e de certa forma se premunindo contra processos judiciais ulteriores, no que viria a chamar-se justiça de transição. A Comissão de Verdade tem um escopo muito mais amplo que o da Anistia, independentemente de suas limitações e, portanto, ao contrário dos que argumentam contra a sua necessidade, a anistia não pode isentar o Estado brasileiro, como Estado democrático de direito, de acolher o direito dos seus cidadãos à verdade sobre o período ditatorial.

Ao mesmo tempo, como o demonstra a experiência internacional, o próprio funcionamento da Comissão Nacional de Verdade e os fatos e esclarecimentos que vier a prestar, pela sua maior abrangência e pela visão mais equânime sobre o processo de luta contra a ditadura militar poderá contribuir para maior qualificação e ampliação dos critérios que presidem hoje a anistia e as reparações.

4. A necessidade incontornável da participação da sociedade civil
A total impunidade dos torturadores e de todos os que cometeram crimes de lesa-humanidade no período ditatorial se inscreve num padrão de dominação das elites brasileiras, que percorre a história política do país. O comportamento auto-justificatório dos comandantes das Forças Armadas, quase sem exceção, constitui um obstáculo ao pleno estabelecimento da verdade e do próprio direito à verdade, como o demonstra o ocultamento sistemático das informações sobre mortos, desaparecidos e perseguidos políticos em geral. A defesa do status quo dominante pela grande mídia patronal desqualifica aqueles que lutaram contra a ditadura, chegando ao extremo de manipular declarações sob tortura constantes do processo contra a Presidente Dilma Roussef, o que acaba por legitimar esse método de obtenção de informações e de terror de Estado.

Mesmo quando comparado aos nossos vizinhos, a justiça de transição será uma obra extremamente árdua e complexa no Brasil, que poderá sofrer continuamente os avatares da conjuntura e da malfadada governabilidade política. Por isso, a participação da sociedade civil e o seu efetivo protagonismo são a única garantia de que a Comissão Nacional de Verdade seja criada com o propósito de apurar violações de direitos humanos cometidos pela ditadura, se instale com poderes reais, funcione adequadamente e cumpra com sua missão. No dizer de Eduardo Gonzalez, referindo-se ao Brasil, “la creación y éxito de una Comisión de Verdad depende de la creación de un amplio movimiento social, de su independencia y objetividad”. (Ver Fontes consultadas)

A autonomia e o protagonismo da sociedade civil possibilitam ademais conferir maior concreção e eficácia aos processos sob exame da Comissão Nacional de Verdade. Contudo, para que isso ocorra, ela deverá ir além das meras denúncias ou das campanhas esporádicas, dispondo dos meios para assumir um maior rigor e mesmo certo profissionalismo no seu trabalho. O governo federal poderia colaborar com isso, apoiando o funcionamento das organizações da sociedade civil, porém evitando ao mesmo tempo um exercício destrutivo de cooptação dos seus melhores quadros, como sói acontecer.

5. Por uma ampla participação da sociedade civil no processo da Justiça de transição no Brasil
Para viabilizar e dar suporte à participação da sociedade civil faz-se necessário elaborar e pôr em marcha, em curto prazo, um programa estruturado de ações de âmbito nacional, sob a égide da sociedade civil, visando mobilizar, discutir e propor caminhos concretos para a consecução da justiça de transição no Brasil e a criação e funcionamento da Comissão Nacional da Verdade.

O programa poderia incluir:

- Audiências públicas na Câmara dos Deputados e, eventualmente, no Senado, ou mesmo no Congresso, tendo como foco a discussão do Projeto de Lei ou temas correlatos.

- De igual modo, encontros ou seminários por Estados ou regiões, ou ainda em municípios que tenham criado centros de memória ou entidades similares.

- Organizar uma conferência ou encontro nacional de organizações da sociedade civil que lutam em favor de direitos humanos ou pela abolição da tortura como as Comissões Justiça e Paz e a Rede Nacional de Justiça e Paz, os Grupos Tortura Nunca Mais, a Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura e outras, que poderia realizar-se conjunta ou concomitantemente com a Audiência Pública acima sugerida.

- Realizar seminários ou oficinas com a participação de estudiosos da justiça de transição, representantes de comissões de verdade de outros países e de organizações internacionais vinculadas ao tema.

- Realizar ações de comunicação junto às mídias (documentário para a TV, peças publicitárias, campanhas pela Internet...), criando, ao mesmo tempo, canais regulares para difusão de informação junto à população.

Os encontros regionais e nacionais seriam públicos, com convites endereçados a órgãos públicos, associações profissionais e entidades interessadas. Além do Projeto de Lei, seriam preparados dossiês e alguns documentos de base sobre o tema, para discussão. Seria formado um conselho de organizações da sociedade civil, composto por uma organização coordenadora, responsável pelo programa, e outras organizações convidadas, e incluiria representantes de órgãos públicos ou comissões, especialmente voltados para a questão dos direitos humanos.

NOTAS
(1) O período abrangido para a apuração das violações retoma o disposto no Artigo nº 8 do ADCT, ou seja, se estende de 1946 até a publicação da Constituição de 1988.

(2) “human rights trials did not interfere with the construction of the rule of law in the region – they helped promote it” (Ver Fontes consultadas, ao final)

Fontes consultadas:
- Arquivo sonoro do Seminário Internacional sobre Comissões de verdade, 13 e 14/12/2010 http://imagem.camara.gov.br/internet/audio/Resultado.asp?txtCodigo=00017510

- Gonzalez, Eduardo, Las comisiones de la verdad y el reto de una CNV en Brasil, International Center for Transitional Justice (ICTJ)

- Mezzarobba, Glenda, Entrevista com Juan Méndez, Presidente do International Center for Transitional Justice (ICTJ), SUR – Revista Internacional de direitos humanos, Nº 7, Ano 4, 2007

- PL-7376/2010, www.camara.gov.br

- Sikkink, Kathryn e Walling, Carrie Booth, Errors about Trials: The Political Reality of the Justice Cascade and Its Impact, APSA, 2005




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domingo, 10 de abril de 2011

Dilma herdou um país muito melhor e uma direita enfraquecida

Carta Maior - Blog do Emir Sader: "Dilma como sucessora de Lula

Os 100 dias podem ser representativos ou não de um governo. Pela primeira vez temos uma presidenta eleita como sucessora e não como oposição, dando continuidade a um governo de sucesso sem precedentes na história politica brasileira e ao maior líder popular do país depois de Getúlio Vargas.

A posse de FHC chegou a ser saudada pelo principal órgão tucano na imprensa com um caderno especial que anunciava a “Era FHC” – deferência que Lula que, sim, instaurou uma nova era no país, não recebeu – e que se perdeu na intranscendência, quando foi ficando claro que FHC era apenas o capitulo nacional dos presidentes neoliberais da região, acompanhando a Menem, Fujimori, Carlos Andrés Perez, Salinas de Gortari, entre outros, no fracasso e na derrota.

O balanço dos 100 primeiros dias de Lula prenunciava as armadilhas em que cairiam seus críticos, tanto à direita, como à esquerda. Os primeiros buscaram desconstruir sua imagem de representante do movimento popular, dando ênfase à continuidade e à dissolução assim das novidades tanto tempo anunciadas pelo PT, especialmente a prioridade do social. Os críticos de esquerda se apressaram, numa linha similar, a dissolver o governo Lula num continuismo coerente com o governo neoliberal de FHC, apelando para os tradicionais epítetos de “traição”, ”capitulação”, ”conciliação”. O governo Lula estava condenado, pelas duas versões, já nos seus primeiros 100 dias.

O enigma Lula – título do capitulo do meu livro “A nova toupeira” que analisa o 'decifra-me ou te devoro' em que constituiu Lula para seus adversários – não tardaria em descolocar esses críticos de direita e de ultraesquerda e derrotar a ambos. Não por acaso na sua sucessão ambos se aliaram contra ele, seja pela força popular que este havia adquirido, seja porque disputavam os supostos méritos de derrota-lo pela campanha de denuncias.

Ambos foram derrotados, quando ficou claro que os 100 primeiros dias eram transição da “herança maldita” – uma espécie de acumulação primitiva – para a geração das condições de um modelo econômico e social de retomada do desenvolvimento e de distribuição de renda, que responderia pelo sucesso inquestionável dos dois governos Lula.

Os 100 dias do governo Dilma são inéditos, por serem continuidade de um governo e de uma liderança de sucesso inéditos no Brasil e, de alguma forma (como apontou Perry Anderson em seu artigo sobre O Brasil de Lula, na London Review of Books), no mundo. Discutia-se, há alguns meses, o que seria o pós-Lula: se o oportunismo de Serra ou o “poste” da Dilma. Nem um, nem outro.

Da mesma forma que a anunciada ruptura de Lula em relação a FHC fez com que se pusesse a ênfase nos elementos de continuidade , deixando de lado as rupturas na politica internacional – com a consequente e transcendental reinserção do Brasil no campo internacional – e as novas politicas sociais que começavam a se esboçar e a ganhar prioridade -, agora se busca destacar as diferenças. Os dois enfoques se equivocaram e se equivocam: o governo Lula não foi continuidade do governo FHC e o governo Dilma não é de ruptura em relação ao governo Lula.

Os elementos essenciais do governo Lula se mantem e se reforçam com Dilma: o modelo econômico e social sofre as adequações que o próprio Lula teria feito, a partir de elementos novos, como a conjuntura econômica internacional, com os fatores cambiários em continuidade com o peso que foram tendo ao longo dos últimos dois anos, em particular. O governo busca enfrentar seus desafios, na estreita ponte entre evitar o descontrole inflacionário, sem aprofundar os desequilíbrios na balança comercial, circunstância que tem no manejo da taxa de juros e de outros instrumentos contra a valorização excessiva da moeda suas difíceis alavancas. O governo Lula não teria feito nada de muito diferente, não por acaso há continuidade nos cargos econômicos, até com maior homogeneidade, pelas mudanças no Banco Central.

Da mesma forma que as politicas sociais preservam seu papel central no modelo que articula o eixo fundamental do governo: desenvolvimento com combate às desigualdades sociais. O PAC continua blindado aos ajustes orçamentários, mantendo seu papel de motor geral do governo na continuidade da expansão econômica e do resgate da pobreza e da miséria no plano social. As adequações do núcleo central do governo melhoraram a harmonia e a capacidade de gestão do eixo essencial que dá continuidade às realizações do governo Lula.

As mudanças tem que ser abordadas no seu marco específico. As da área da saúde se destacam como claramente positivas e dinamizadoras naquele que é um dos problemas sociais mais graves do país – a saúde pública. A Secretaria de Direitos Humanos , em continuidade com o mandato anterior, ganha nova dimensão e capacidade de iniciativa, que a projeta para o centro dos objetivos políticos do governo, com a Comissão da Verdade. O IPEA, felizmente, dá continuidade ao extraordinário trabalho que vinha desenvolvendo. O Ministério das Comunicações, por sua vez, passa a integrar-se nos objetivos fundamentais do governo, assumindo tarefas essenciais na democratização das comunicações no país.

Os problemas – que abordaremos em artigo posterior – têm que ser abordados neste marco: o da continuidade do governo Dilma com o governo Lula, para não se perder em visões impressionantes, ou que isolem aspectos parciais da totalidade do governo ou que se deixem levar por fáceis abordagens jornalísticas – que costumam cair na visão descritiva, nas aparências, sem capacidade de analise politica de fundo e na proporção de vida, das questões.

Os problemas – para enunciá-los já – residem na área econômica: nas dificuldades das medidas de adequação, sem colocar em risco os objetivos centrais do governo. Nas condições socais de realização das obras do PAC – os problemas sociais mais graves que o governo enfrenta. Nos matizes da politica internacional. E na politica cultural.

Mas o principal avanço do governo Dilma está na sua capacidade de ampliar o potencial hegemônico do governo, isto é, de manter o eixo essencial das politicas que marcaram o governo Lula, em um marco de alianças e de legitimidade social e politica mais ampla, estendendo a capacidade de diálogo e interlocução com outros setores sociais – como a classe média –, assim como com a oposição. Nisso consiste a arte essencial da construção de alternativas ao neoliberalismo: avançar em um modelo alternativo, garantindo as condições econômicas, sociais, politicas e culturais de sua reprodução e consolidação. Uma disputa hegemônica em que o governo Dilma herda não apenas um país muito melhor daquele que Lula herdou há 8 anos atrás, mas uma direita enfraquecida, derrota e desmoralizada, tanto no seu vetor politico partidário, como no midiático.

É esse o cenário em que deve ser avaliado o governo Dilma, nos seus avanços e nos problemas que têm pela frente, nos seus milhares de outros dias.

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