segunda-feira, 11 de abril de 2011

Promovendo um debate público sobre a Comissão da Verdade


Carta Maior - Direitos Humanos : "Promovendo um debate público sobre a Comissão da Verdade

Diversamente que preconiza uma certa mídia, fazendo eco a interesses patronais e a receios no tocante à exposição pública do seu papel durante a ditadura militar, a experiência internacional das Comissões de Verdade não abona a tese do risco de confrontos sociais. Pelo contrário, a justiça de transição, independentemente dos caminhos seguidos em cada país, jamais trouxe ou aumentou os níveis de violência, conduzindo, por exemplo, a golpes de Estado ou ameaças de alteração da ordem social. A reconciliação nunca precisou ser imposta como pressuposto ao funcionamento das Comissões de Verdade. O artigo é de Luiz Carlos Fabbri.

Luiz Carlos Fabbri - Comissão Justiça e Paz de São Paulo

Promovendo um debate público em torno da criação e funcionamento de uma Comissão de Verdade no Brasil

Resumo

O presente documento tem por objetivo justificar e propor um papel protagonista da sociedade civil no processo de implantação da Comissão Nacional de Verdade no Brasil, cuja proposta de criação, constante de Projeto de Lei do governo federal em meados de 2010, tramita atualmente na Câmara de Deputados. No documento, avaliam-se os obstáculos para a consecução da justiça de transição no Brasil, em particular a impunidade frente à violação dos direitos humanos, como traço permanente da história política do país; apontam-se alguns ensinamentos relevantes de experiências de outros países; argumenta-se em torno da necessidade incontornável da participação da sociedade civil nessa empreitada e sugerem-se alguns componentes e modo de funcionamento de um programa estruturado de ações sob a égide da sociedade civil.

1. Contexto
Um projeto de lei que cria a Comissão Nacional da Verdade, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, foi enviado pelo Executivo ao Congresso em maio de 2010, tendo recebido a referência PL-7376/2010. Antes que isso ocorresse, o tema do direito à memória e à verdade foi objeto de intensas discussões no seio do governo federal, polarizadas entre o Ministério da Defesa e a Secretaria de Direitos Humanos. A formulação inicial que fazia parte do III Programa Nacional de Direitos Humanos foi criticada pelo Ministro da Defesa e pelos Comandantes das Forças Armadas, com ampla repercussão na mídia.

Em consequência, produziu-se um acordo político pelo qual várias ações programáticas contidas nos Objetivos Estratégicos que dão corpo ao Eixo Orientador VI, versando sobre o Direito à Memória e Verdade, foram modificadas com respeito à versão original do III PNDH, mediante o Decreto Nº 7.177, de 12 de maio de 2010. As alterações se referem basicamente a uma ampliação de foco, eliminando a referência explícita aos crimes cometidos pela ditadura e substituindo-a por uma forma mais anódina ('graves violações de direitos humanos praticadas no período'), ao mesmo tempo em que se relativizavam as responsabilidades das instituições militares no enunciado de ações programáticas específicas.

De maneira geral, os objetivos da Comissão Nacional de Verdade, constantes do Projeto de Lei, são bastante amplos e expressivos, como a seguir reproduzido:

“I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1° (1);

II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;

III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995;

V - colaborar com todas as instâncias do Poder Público para apuração de violação de direitos humanos, observadas as disposições das Leis nos 6.683, de 28 de agosto de 1979, 9.140, de 1995, e 10.559, de 13 de novembro de 2002;

VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.”

Segundo Eduardo Gonzalez, do Centro Internacional de Justiça de
Transição, o PL-7376/2010 tem objetivos meritórios, se tomarmos como referência experiências de outros países, como são os de promover o esclarecimento das violações ocorridas e, o que é muito relevante, de sua autoria; estabelecer formas de colaboração e parceria entre instituições públicas; determinar a realização de perícias e diligências; e promover audiências públicas. No entanto, ainda em sua opinião, é possível destacar
alguns sérios desafios que terá que enfrentar a Comissão Nacional de Verdade, aquilo que Paulo Freire chamaria de negatividades:

- Período histórico abrangido é demasiado extenso.

- Não há clareza sobre a composição e o modo de designação dos membros da Comissão.

- Poder de requisição de informações pode resultar frágil em caso de ocultamento contumaz.

- Obrigatoriedade de resposta governamental ao seu relatório final pode resultar problemática.

- Por último, mas não menos importante, a tradição de conciliação e impunidade, presente nas elites e no establishment político no Brasil vai continuamente manifestar-se.

O PL-7376/2010 tramita hoje na Câmara de Deputados e passados sete meses muito pouco foi feito. Nem sequer foi formada uma comissão especial para o exame do Projeto, como é habitual. Nos dias 13 e 14 de dezembro passado foi realizado um seminário internacional pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias, que possibilitou contudo desencadear o processo de discussão na Câmara.

O presente documento propõe-se a esclarecer alguns aspectos cruciais dos processos de justiça de transição no mundo e as particularidades da situação brasileira, destacar alguns ensinamentos úteis extraídos das experiências de outros países e demonstrar o caráter incontornável da participação da sociedade civil tanto na perspectiva do aperfeiçoamento do instrumento legal como do próprio funcionamento da Comissão de Verdade e do alcance dos seus objetivos. Com este propósito propõe a necessidade de um amplo processo de participação da sociedade civil em encontros ao longo de todo o país, região por região, já durante a fase atual, de tramitação do Projeto de Lei.

2. As particularidades do Brasil frente à necessidade de uma justiça de transição
A situação preponderante no Brasil é a de total impunidade dos torturadores e de todos aqueles que cometeram violações de direitos humanos durante a ditadura militar, o que representará sem dúvida um enorme desafio para a aprovação do PL-7376/2010 e para o próprio funcionamento da Comissão Nacional de Verdade. Ilustram este fato a crise gerada pela divulgação do III PNDH, acima referida, e o julgamento Superior Tribunal Federal acerca da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pela OAB, em que por 7 votos a 2, os ministros mantiveram o perdão aos que praticaram crime de tortura durante a ditadura militar.

Embora a capacidade de perdoar tivesse sido invocada pelos Ministros que votaram contra a ADPF, o valor do perdão só faz sentido se for concedido pelas vítimas da opressão, o que por sua vez supõe um pedido de perdão da parte dos que cometeram crimes. Com a decisão do STF, o Estado se antecipa às vítimas e decreta o seu perdão em nome delas. Com isso, a Comissão Nacional da Verdade poderia a rigor apurar verdades históricas, porém a dimensão de justiça estaria ausente porque os que cometeram crimes já foram perdoados.

O Projeto de Lei em trâmite na Câmara coloca entre seus objetivos a reconciliação. Sem que pedidos de perdão tenham que ser formulados e com a impunidade assegurada, não poderá haver materialidade para a reconciliação. Para a Comissão Nacional da Verdade, a reconciliação teria que ser entendida como um processo instituindo uma nova forma de convivência entre aqueles que se opuseram e se confrontaram numa dada fase histórica e que aceitam doravante virar a página do passado. A reconciliação não pode acobertar a prática de crimes como a tortura, o que seria não somente inexeqüível para o objetivo pretendido como uma afronta à memória de suas vítimas.

A permanência da impunidade representa uma chaga jamais curada no corpo social, um estigma histórico que a Comissão Nacional da Verdade precisará ajudar a superar. Ela está na raiz da contínua prática da tortura e da violência policial e carcerária nos dias atuais e constitui por si só um sério empecilho a reformas institucionais profundas e à implantação de um novo modelo de segurança. A razão de ser da justiça de transição é necessariamente a de permitir que as causas que estiveram na origem da ação violenta, dos assassinatos e das torturas, com sua seqüela de opressão e desrespeito à dignidade humana sejam reconhecidas como tais e enfrentadas.

Por outro lado, a Comissão Nacional de Verdade terá que impor-se ao sistemático ocultamento dos arquivos e informações sobre os mortos e desaparecidos, assim como sobre os perseguidos pela ditadura militar, sem o que não será possível assegurar o respeito aos direitos das vítimas e à própria verdade. Isso supõe um poder inequívoco de exigir essa prestação das instituições militares, qualificando a recusa como ação criminosa.

O imperativo da publicização dos crimes de violação dos direitos humanos e do fim da impunidade dos que os perpetraram constitui uma obra civilizatória, a construir com a participação da sociedade e o envolvimento direto das vítimas. O sucesso da Comissão de Verdade no Brasil terá que representar um ajuste de contas com o passado e um passo decisivo para o avanço democrático no país. Se isso não ocorrer tudo ficará como dantes, dentro e fora do quartel de Abrantes.

3. Alguns ensinamentos de Comissões de Verdade em outros países
Diversamente que preconiza uma certa mídia, fazendo eco a interesses patronais e a receios no tocante à exposição pública do seu papel durante a ditadura militar, a experiência internacional das Comissões de Verdade não abona a tese do risco de confrontos sociais. Pelo contrário, a justiça de transição, independentemente dos caminhos seguidos em cada país, jamais trouxe ou aumentou os níveis de violência, conduzindo, por exemplo, a golpes de Estado ou ameaças de alteração da ordem social. A reconciliação nunca precisou ser imposta como pressuposto ao funcionamento das Comissões de Verdade.

Pelo contrário, como concluiram os pesquisadores Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling, da Universidade de Minnesota, após extenso exame de processos de justiça de transição em todo o mundo, os julgamentos sobre a violação de direitos humanos nunca dificultaram a construção de regimes de direito na região, porém ajudaram a promovê-los (2). Kathryn Sikkink, em visita ao Brasil em 2008, afirmou claramente que “a punição aos torturadores do período militar não traz risco de instabilidade à democracia. Pelo contrário: além de consolidar o regime democrático pode melhorar a vida da população, com o avanço da preservação dos direitos humanos no país.”

Não existe, no entanto, um modelo único para a implantação de Comissões de Verdade. Isso depende muito da evolução histórica de cada país e do contexto político dos períodos em que o tema é colocado em pauta pela sociedade. Tão pouco, há uma relação necessária de precedência entre os processos de anistia política, as reparações políticas, econômicas ou
administrativas concedidas aos perseguidos e o início de funcionamento de uma justiça de transição.

No caso brasileiro, a anistia política de 1979, concedida pela ditadura militar, além de não abranger a totalidade dos que haviam lutado contra a ditadura, impôs a figura dos crimes conexos, com o propósito de isentar ou perdoar torturadores, e de certa forma se premunindo contra processos judiciais ulteriores, no que viria a chamar-se justiça de transição. A Comissão de Verdade tem um escopo muito mais amplo que o da Anistia, independentemente de suas limitações e, portanto, ao contrário dos que argumentam contra a sua necessidade, a anistia não pode isentar o Estado brasileiro, como Estado democrático de direito, de acolher o direito dos seus cidadãos à verdade sobre o período ditatorial.

Ao mesmo tempo, como o demonstra a experiência internacional, o próprio funcionamento da Comissão Nacional de Verdade e os fatos e esclarecimentos que vier a prestar, pela sua maior abrangência e pela visão mais equânime sobre o processo de luta contra a ditadura militar poderá contribuir para maior qualificação e ampliação dos critérios que presidem hoje a anistia e as reparações.

4. A necessidade incontornável da participação da sociedade civil
A total impunidade dos torturadores e de todos os que cometeram crimes de lesa-humanidade no período ditatorial se inscreve num padrão de dominação das elites brasileiras, que percorre a história política do país. O comportamento auto-justificatório dos comandantes das Forças Armadas, quase sem exceção, constitui um obstáculo ao pleno estabelecimento da verdade e do próprio direito à verdade, como o demonstra o ocultamento sistemático das informações sobre mortos, desaparecidos e perseguidos políticos em geral. A defesa do status quo dominante pela grande mídia patronal desqualifica aqueles que lutaram contra a ditadura, chegando ao extremo de manipular declarações sob tortura constantes do processo contra a Presidente Dilma Roussef, o que acaba por legitimar esse método de obtenção de informações e de terror de Estado.

Mesmo quando comparado aos nossos vizinhos, a justiça de transição será uma obra extremamente árdua e complexa no Brasil, que poderá sofrer continuamente os avatares da conjuntura e da malfadada governabilidade política. Por isso, a participação da sociedade civil e o seu efetivo protagonismo são a única garantia de que a Comissão Nacional de Verdade seja criada com o propósito de apurar violações de direitos humanos cometidos pela ditadura, se instale com poderes reais, funcione adequadamente e cumpra com sua missão. No dizer de Eduardo Gonzalez, referindo-se ao Brasil, “la creación y éxito de una Comisión de Verdad depende de la creación de un amplio movimiento social, de su independencia y objetividad”. (Ver Fontes consultadas)

A autonomia e o protagonismo da sociedade civil possibilitam ademais conferir maior concreção e eficácia aos processos sob exame da Comissão Nacional de Verdade. Contudo, para que isso ocorra, ela deverá ir além das meras denúncias ou das campanhas esporádicas, dispondo dos meios para assumir um maior rigor e mesmo certo profissionalismo no seu trabalho. O governo federal poderia colaborar com isso, apoiando o funcionamento das organizações da sociedade civil, porém evitando ao mesmo tempo um exercício destrutivo de cooptação dos seus melhores quadros, como sói acontecer.

5. Por uma ampla participação da sociedade civil no processo da Justiça de transição no Brasil
Para viabilizar e dar suporte à participação da sociedade civil faz-se necessário elaborar e pôr em marcha, em curto prazo, um programa estruturado de ações de âmbito nacional, sob a égide da sociedade civil, visando mobilizar, discutir e propor caminhos concretos para a consecução da justiça de transição no Brasil e a criação e funcionamento da Comissão Nacional da Verdade.

O programa poderia incluir:

- Audiências públicas na Câmara dos Deputados e, eventualmente, no Senado, ou mesmo no Congresso, tendo como foco a discussão do Projeto de Lei ou temas correlatos.

- De igual modo, encontros ou seminários por Estados ou regiões, ou ainda em municípios que tenham criado centros de memória ou entidades similares.

- Organizar uma conferência ou encontro nacional de organizações da sociedade civil que lutam em favor de direitos humanos ou pela abolição da tortura como as Comissões Justiça e Paz e a Rede Nacional de Justiça e Paz, os Grupos Tortura Nunca Mais, a Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura e outras, que poderia realizar-se conjunta ou concomitantemente com a Audiência Pública acima sugerida.

- Realizar seminários ou oficinas com a participação de estudiosos da justiça de transição, representantes de comissões de verdade de outros países e de organizações internacionais vinculadas ao tema.

- Realizar ações de comunicação junto às mídias (documentário para a TV, peças publicitárias, campanhas pela Internet...), criando, ao mesmo tempo, canais regulares para difusão de informação junto à população.

Os encontros regionais e nacionais seriam públicos, com convites endereçados a órgãos públicos, associações profissionais e entidades interessadas. Além do Projeto de Lei, seriam preparados dossiês e alguns documentos de base sobre o tema, para discussão. Seria formado um conselho de organizações da sociedade civil, composto por uma organização coordenadora, responsável pelo programa, e outras organizações convidadas, e incluiria representantes de órgãos públicos ou comissões, especialmente voltados para a questão dos direitos humanos.

NOTAS
(1) O período abrangido para a apuração das violações retoma o disposto no Artigo nº 8 do ADCT, ou seja, se estende de 1946 até a publicação da Constituição de 1988.

(2) “human rights trials did not interfere with the construction of the rule of law in the region – they helped promote it” (Ver Fontes consultadas, ao final)

Fontes consultadas:
- Arquivo sonoro do Seminário Internacional sobre Comissões de verdade, 13 e 14/12/2010 http://imagem.camara.gov.br/internet/audio/Resultado.asp?txtCodigo=00017510

- Gonzalez, Eduardo, Las comisiones de la verdad y el reto de una CNV en Brasil, International Center for Transitional Justice (ICTJ)

- Mezzarobba, Glenda, Entrevista com Juan Méndez, Presidente do International Center for Transitional Justice (ICTJ), SUR – Revista Internacional de direitos humanos, Nº 7, Ano 4, 2007

- PL-7376/2010, www.camara.gov.br

- Sikkink, Kathryn e Walling, Carrie Booth, Errors about Trials: The Political Reality of the Justice Cascade and Its Impact, APSA, 2005




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