quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

“a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”

Da Carta Maior

Atualidade do projeto democrático-participativo

O significado do projeto democrático-participativo acha-se na máxima marxista de que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Os avanços conquistados, sob o impulso de governos de esquerda na AL e no Brasil, são o resultado da introdução da participação social no aparato institucional da sociedade política.
A política não é predicado dos detentores de mandato eletivo. Para vastas camadas da população, a política é o ponto de convergência em que “a organização, a conscientização sobre os objetivos da luta e a própria luta não são fases distintas no tempo... mas aspectos diversos de um único e mesmo processo”, como sublinhou Rosa Luxemburgo (Problemas organizativos da socialdemocracia russa, 1904). Marx (Teses sobre Feuerbach,1845), em um texto tido por berço da concepção socialista, já apontara nessa direção ao transcender a contradição entre os idealistas alemães, para os quais a promoção de uma nova consciência nos indivíduos conduziria a uma nova sociedade, e os materialistas franceses, para os quais seria preciso mudar as circunstâncias para que os indivíduos se modificassem. “A coincidência da modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como prática transformadora” (III Tese).

Fundamental é a “práxis”.O ato de participação constrói a pertença identitária dos trabalhadores conduzindo, da consciência “latente” (classe “em si”), à consciência “prático-ativa” (classe “para si”). O projeto democrático-participativo, responsável pelas mudanças em curso na América Latina, com nuances e ritmos de acordo com a realidade local, é expressão de uma visão de mundo que tem como vértice a participação social. No Brasil, esse processo galvaniza multidões em diferentes escalas, por todos os quadrantes, do pampa ao semi-árido, das metrópoles às zonas rurais, com um notável incremento da vida associativa e sociocomunitária. Dados do IBGE, frise-se, informam que aumentou o número de municípios com conselhos de vários tipos e se multiplicaram as conferências nas unidades federadas, nos últimos anos. Prova inequívoca de que o governo do ex-retirante nordestino, Lula da Silva, legou uma consciência prático-ativa ao povo brasileiro.

Se o protagonismo popular continuar a inspirar a elaboração de políticas públicas democráticas, por via do choque dialético dos fluxos comunicativos/participativos com os mecanismos deliberativos formais, um padrão de representação política híbrida se firmará no horizonte. O que as elites tradicionais temem é o efeito demonstrativo sobre os demais países latino-americanos. As Conferências Nacionais têm ajudado a formatar programas e leis abrangentes, mostrando que é possível aprimorar a democracia representativa com a criação de canais institucionais para o exercício da democracia participativa. Esses “espaços públicos estatais” traduzem o acúmulo de conhecimento dos movimentos sociais, em diferentes áreas de intervenção, e se pautam por um republicanismo militante que serve de paradigma à reestruturação do Estado também na Bolívia, no Equador e na Venezuela: contextos de alta conflitividade. Consentâneo a canção, “nada será como antes, amanhã”.

Sob esse aspecto, a 1° Conferência Nacional sobre Transparência e Participação Social, organizada pela Controladoria-Geral da União (CGU) e convocada, por decreto presidencial, para outubro do corrente com o tema “A sociedade no acompanhamento da gestão pública” apresenta-se como uma espécie de “PAC da participação social”. Para a rede da Associação Brasileira Contra a Corrupção e a Impunidade (ABRACCI), trata-se de um momento importante para o fortalecimento do controle social no combate aos malfeitos e à leniência na apuração das faltas. Vale salientar que a estréia da 1° Consocial será precedida por conferências municipais, regionais, estaduais e distritais, de onde sairão os delegados, representantes da sociedade e da administração pública em todos os níveis federativos. Toma forma a Revolução Democrática, aspiração dos oprimidos através dos séculos.

Meios procedimentais condicionam os fins

Para Marcio Pochmann (O Estado e seus desafios na construção do desenvolvimento brasileiro, 2010), a refundação estatal no Brasil reclama três eixos estruturantes: a) uma reorganização administrativa e institucional que estimule a integração setorial de políticas públicas a partir de matrizes comuns; b) uma ampliação das políticas distributivas, de repartição da renda, para as redistributivas, de expansão da progressividade do fundo público sobre os rendimentos do capital (lucro, juros, aluguel e renda de terras) e; c) uma reinvenção do mercado, centrada nos micro e pequenos negócios, com políticas de reconfiguração do compósito por intermédio de bancos públicos de financiamento da produção e comercialização, difusão tecnológica, assistência técnica, etc. Não passaram-lhe desapercebidas “as exigências de transparência e crescente participação social”.

Em concordância com a agenda de prioridades arroladas pelo coordenador do Ipea, no entanto, deve-se acrescer ao feixe capaz de vertebrar o Estado de bem-estar social que ganha contornos, a democracia participativa. As demais balizas serão implementadas apenas se houver avanços na socialização do poder político. Eis aí a diferença da “socialdemocracia do Sul” com a “socialdemocracia do Norte”. Lá, a socialização de bens materiais viabilizou-se sem a necessidade de uma oxigenação da política. Aqui, os meios procedimentais condicionam organicamente os fins. São as experiências participativas que mantêm acesa a expectativa de democratização e universalização das políticas públicas e direitos sociais, desde o fim do ciclo militar-ditatorial. Entre nós, soa com maior dramaticidade a assertiva do sociólogo espanhol Manuel Castells (O poder da identidade, 1999) de que “a democracia política... transformou-se num vazio”. Sim, de valores morais. A sensação é generalizada no país, por doloroso que seja dizê-lo justo no início (1° de fevereiro) da próxima legislatura.

As frustrações remetem sobremaneira ao lapso temporal hegemonizado por governantes fiéis ao Consenso de Washington, adeptos dos ajustes fiscais anti-sociais, desregulamentações, privatizações e alinhamentos submissos na órbita internacional. A consequência foi uma onda de desindustrialização e brutal desemprego, sob o tacão do FMI e do Banco Mundial. Em nome do livre-comércio, os povos da região foram condenados à miséria e ao desamparo. Na Argentina, em 2004, para se ter ideia, 56,4% dos menores de 18 anos eram pobres (quase 8 milhões) e 23,6% eram indigentes (mais de 3 milhões), segundo levantamento do órgão oficial encarregado das estatísticas e censos (Indec). Esse templo de misérias foi edificado pelo culto ao deus-mercado, com um altar para as Bolsas de Valores.

Para enfrentar os efeitos da crise econômica, surgiram os “movimientos piqueteros”, as “asambleas barriales” e os movimentos de trabalhadores autogestionários das empresas recuperadas, que culminaram na condenação dos políticos eleitos com uma consigna de varredura geral: “que se vayam todos”. Tecia-se a resistência após o dilúvio menemista, com epicentro na Casa Rosada. À época, certas noções (direitos, proteção social) estavam proscritas do discurso público. Descentralização, no dicionário da ideologia dominante, significava desmonte do Estado social burocrático, centralizador e ineficaz. No Continente, ainda não despontavam as “juntas de vecinos”e as “controlatorías ciudadanas”(Assunção)ou o “presupuesto participativo”(Rosário)e outros formatos organizacionais criativos que colocariam na ofensiva os atores sociopolíticos adversários do projeto neoliberal.

Participação e responsabilidade cívica

No Brasil, as dificuldades são agravadas graças à naturalização por longa data das desigualdades sociais, entulho que remonta ao prelúdio colonial e escravagista. “Ao contrário da Argentina e do Uruguai, não temos um passado melhor, com direitos sociais garantidos a uma ampla parcela da sociedade e a experiência de uma nação em que todos são cidadãos”, assinalou a propósito a pesquisadora do Instituto Pólis, Maria do Carmo Alves de Albuquerque (Participação e controle da sociedade sobre políticas sociais no Cone Sul, 2007). O que não impediu uma acentuada inflexão protagônica da sociedade civil no pós-ditadura, espalhando pelo território Conselhos Paritários de participação em políticas setoriais e Orçamentos Participativos, com mais de 200 OPs contabilizados até 2005. Como na frase de Goethe: “No começo de tudo não se encontra o Verbo, mas a Ação!”

Na origem das boas políticas públicas fervilha a interação dialógica dos movimentos sociais com entidades profissionais e acadêmicas. Aconteceu no estágio preliminar da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (2006), preparada no respectivo conselho (Consea). Idem, no que concerne à Reforma Urbana que redundou na aprovação do Estatuto da Cidade (2001) , na criação do Ministério das Cidades (2003), no Plano Nacional de Habitação e no Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (2004). Registre-se, no ínterim, as Conferências das Cidades realizadas em 3.400 municípios e a Conferência Nacional das Cidades, que alinhavou diretrizes políticas e derivou o Conselho Nacional das Cidades. Essas conquistas ilustram um produtivo intercâmbio intelecto-político.

No sumário interativo/participacionista, destaque-se igualmente os movimentos pela moradia com metas para faixas de baixa renda, contempladas no programa federal Minha Casa, Minha Vida (2009). E, para que não transite a impressão laudatória de que, se a roda da história não foi inventada, ao menos foi movida por um metalúrgico de São Bernardo do Campo, o que poderia suscitar ciúmes em algum sociólogo, convém rememorar os movimentos empenhados na formulação de políticas de direitos que, na esteira da promulgação da Constituição (1988), teceram o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). O eco das mobilizações sociais da década de 80 reverberou no documento de apresentação do Ministério da Saúde, ao expor o objetivo do ECA: “garantir a todas as crianças e adolescentes o tratamento com atenção, proteção e cuidados especiais para se desenvolverem e tornarem adultos conscientes e participativos do processo inclusivo”.

A evocação final para a formação de “adultos conscientes e participativos do processo inclusivo”, limitada pela extemporaneidade da comparação, lembra a famosa Oração fúnebre aos gregos mortos na guerra de Peloponeso, na qual o líder da democracia ateniense, o estratego-general Péricles (495-429 a.C.), depois de louvar os princípios de conduta, os valores morais dos membros da antiga Cidade-Estado e o regime de governo vigente em Atenas faz uma exortação aos seus concidadãos para que intervenham nos assuntos públicos, escarnecendo da apatia política individual: “Olhamos o homem alheio às atividades públicas não como alguém que cuida somente de interesses particulares, mas como um inútil”. Sublinhava o binômio participação e responsabilidade cívica, a síntese do projeto democrático-participativo revigorada com a eleição da presidenta Dilma Rousseff.

Hegemonia: Estado mais sociedade civil

Na era demotucana, depositaram-se todas as virtudes e disposições à liberdade na sociedade civil; todos os vícios e propensões à dominação no Estado. Reproduziu-se o cacoete (clássico/neo) liberal. Com tal pano de fundo, virou moda jogar confetes ao “espaço público não estatal”, terminologia que não escondia a diabolização relativa a tudo que espargisse o mau cheiro do “estatismo”. A ginástica conceitual, que visava fazer uma distinção - quanta imaginação! - entre o Estado perseguido pelo governo FHC e o Estado mínimo defendido pelo núcleo duro do neoliberalismo, teve contorcionismos sofisticados na pena do ex-ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado. Para tanto, Luiz Carlos Bresser-Pereira (Entre o Estado e o mercado: o público não estatal, 1999) converteu a sociedade civil em sinônimo de mercado e inseriu, entre este e o Estado, o espaço público, como reza o título acima. Travestido e tergiversado, o ágil coelho saía da cartola.

No “espaço público não estatal” coexistiriam dois elementos: o produtivo (o “terceiro setor”, “setor sem fins lucrativos”) e o controle social (“organizações sociais” que se caracterizariam por não utilizarem servidores públicos). Sem uma dimensão estatal, esse seria também o terrenoda democracia participativa ou direta. É fácil explicar porque as Conferências Nacionais não deslancharam, o mercado não tem nenhuma vocação para a democracia. Como um profeta azarado, arrematava o douto que “a Reforma do Estado que está ocorrendo nos anos 90, deverá conduzir a um Estado fortalecido, com as finanças recuperadas e, com a administração obedecendo a critérios gerenciais de eficiência” (sic).

“Au contraire, au contraire”. O saldo foi catastrófico. O cotejo impõe-se. Em 2002, as reservas do Tesouro Nacional eram de 185 bilhões de dólares negativos (atualmente, 250 bilhões de dólares positivos), a taxa de juros Selic batia em 27% (atualmente 11,25%), o salário mínimo patinava em 78 dólares (atualmente, 334 dólares) o desemprego atingia 12% da população ativa (atualmente, 6,7%), 90% das estradas estavam danificadas (atualmente, 80% regularizadas), havia apagões energéticos (atualmente, luz para todos), a educação fora sucateada (atualmente, 10 novas universidades públicas, 214 novas escolas técnicas), e segue por diante o baile. Não à toa, o interstício exterminador foi jogado no esquecimento pela direita, que nunca pleiteou a herança perversa nas campanhas eleitorais subsequentes.

Em lugar de distanciar-se, as vertentes civilizatórias da sociedade civil devem aproximar-se do Estado, qualificar os canais de participação existentes e potencializar o aparecimento de outros arranjos institucionais, resguardando a sua autonomia organizativa e o seu metabolismo interno para tomada de decisões. Para os movimentos sociais, isso implica na possibilidade de exprimirem-se com uma feição menos reivindicativa e mais propositiva, alçando-se a um patamar superior de apreensão teórica e política dos problemas para disputar a hegemonia no âmbito do Estado. Este, compreendido em sentido “integral” ou “ampliado”, conforme o constructo gramsciano, abarcando a sociedade civil. Para as ONGs, que condensam um patrimônio simbólico expressivo e influente no tabuleiro político, implica o alargamento do campo de atuação e acesso a recursos públicos que contribuiriam para equacionar a crise de financiamento que afeta-as desde que minguaram os aportes oriundos de parcerias internacionais. O ponto pendente concerne ao marco legal e ético que regulará essas relações para que não pairem dúvidas interessadas sobre as mesmas.

Passaporte para a utopia socialista

Mais que uma resposta à crise de representação política do parlamento burguês ou à crise das narrativas revolucionárias épicas, nos moldes da queda da Bastilha (França), da ocupação do Palácio de Inverno (Rússia) ou da descida de Sierra Maestra (Cuba), o significado do projeto democrático-participativo acha-se na máxima marxista de que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Os avanços conquistados, sob o impulso de governos de esquerda na AL e no Brasil, são o resultado da introdução da participação social no aparato institucional da sociedade política. A sociedade civil, assim, ao invés de assumir um papel de oposição ao Estado, como prescreve o receituário conservador, concorre para a democratização radical de suas estruturas, convertidas em caixas estatais de ressonância da vontade popular. Naquelas, constroem-se a igualdade republicana, o reconhecimento das diferenças e a legitimidade de direitos. Essa promissora conjunção política, hoje, é o que carimba o passaporte para a utopia socialista.

Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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